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Fora de Foco - Os nossos filhos

26 abr 2022
Fora de Foco

Os nossos filhos

“Os vossos filhos não são vossos. Pertencem à vida.   

Vêm por vosso meio, mas não de vós, e apesar de estarem convosco não vos pertencem.

Podeis dar-lhes o vosso amor, mas não os vossos pensamentos porque eles têm os seus. Podeis acolher os seus corpos, mas não as suas almas, porque elas habitam já um futuro que vós não podeis visitar nem em sonhos. Podeis esforçar-vos por ser como eles; mas não tentar fazê-los como vós, porque a Vida não anda para trás, nem se detém no Presente.”

Khalil Gibran[1]

              

Há um ninho na lembrança de todos e de cada um de nós. Olhando para trás, vislumbramos, lá muito ao longe, um colinho, um porto de abrigo, onde alguém nos conta uma história de encantar, enquanto todas as fadas bailam ao nosso redor, escutando, também elas deliciadas, a história. E continuando a olhar através da bruma do tempo, sentimos um rosto macio no nosso, dar-nos um beijo de boas noites, e uma mão suave afagar a nossa cabecita mergulhada no sumo enleio de uma almofada quentinha. Então, somos transportados para o mundo dos sonhos e o nosso sono é um sono doce, um caleidoscópio de emoções boas, porque estamos seguros de que, quando na manhã seguinte acordarmos, a mesma mão que nos acariciou a cabecita antes de

Este foi o nosso ninho, aquele ninho que acaricia a nossa memória de tempos recuados.

Mas o nó górdio para aqueles que, nos dias de hoje, constituem a luz e os alicerces do ninho de uma criança, reside na conciliação entre a vida profissional e a vida familiar. Perante a voragem da competição e do sucesso profissionais, em cujas malhas todos nós acabamos inelutavelmente por cair, quantos passarinhos de olhar suplicante não ficam a pipilar, enquanto, não raro, a nossa resposta é a ausência física e uma mente direccionada para a resposta às múltiplas exigências profissionais?

Não raro olvidamos que o nosso maior objectivo deverá ser proporcionar um bom ninho aos nossos passarinhos. Essa deverá ser a nossa prioridade, a nossa prima preocupação. É na competição para que os nossos filhos tenham o melhor ninho do mundo, que nos devemos seriamente empenhar. E é nesse empenho que devemos alicerçar o nosso sucesso profissional.

Quando mais tarde, já com a nossa vida profissional estabilizada, despertamos, verificamos que, enquanto estivemos super-ocupados no exercício das nossas funções profissionais, os nossos passarinhos cresceram, ganharam asas e voaram, sem que nós tenhamos tido disponibilidade para estar sempre de mão dada com eles.

E aqui, já nos encontramos a ser assolados pela “angústia da separação”, pela “síndrome do ninho vazio”. É que os nossos filhos - aqueles que, nas palavras do filósofo, não são nossos, mas pertencem à vida, que vêm por nosso meio, mas não de nós, e que, apesar de estarem connosco, não nos pertencem -, já estão longe de casa, na Faculdade, ou já se encontram, também eles, no exercício absorvente da sua profissão. Então, constatamos que agora precisamos nós mais deles do que eles de nós, e temos de aprender a viver com a sua presença ausente.

Nesta fase da nossa existência, deparamo-nos com o silêncio ensurdecedor de uma casa quieta: do piano não mais se desprendem maravilhosas melodias tantas vezes repetidas em sessões de estudo diárias;  as vozes que ouvíamos ler os materiais de estudo, calaram-se; da televisão já não se libertam os sons característicos dos jogos da Playstation; já não soa a correria pelos degraus de madeira da escadaria interior da casa, característica de quem já está atrasado para as aulas.

Quedamo-nos à porta do quarto vazio, com os olhos marejados de lágrimas. Interrogamo-nos como é possível, na sua rotação, a roda da vida atingir esta velocidade vertiginosa, e imploramos:

- Meu Deus, faz com que a roda da vida gire no sentido inverso. Filhos, voltem, sejam pequeninos de novo e peçam-me colo outra vez, só mais uma vez, e outra ainda, e só mais outra… Tratem-me de novo por “Minha querida Princesa” e digam-me outra vez: “Estás tão bonita, Mamã!”

Embora há décadas, ao regressar a casa, náufragos de mais um dia cheio de processos complexos e diligências extenuantes, não o tenhamos consciencializado, a melhor fase da nossa vida foi precisamente aquela em que ouvíamos: “Dá-me colo, Mamã.”

E só dando esse colo, renascíamos dos despojos de um dia de trabalho.

E agora? Como viver numa casa quieta?

 

Isabel Cabral Costa

 


[1]  “As Crianças”, in “O Profeta”, www.alma-azul.pt, pag. 11.