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Fora de Foco - O réu

15 mar 2022
Fora de Foco

O juiz acaba de entrar. Na sala abate-se um silêncio pesado. O réu perfila-se à frente, magro, roupa puída, cabeça baixa. Sexagenário já, rugas profundas mapeiam o seu rosto afilado e seco.

Na sala encontram-se algumas pessoas, reformados sem ocupação, desempregados, ou simples curiosos de passagem, mas todos eles sedentos de drama ou de causas e efeitos mais ou menos desagradáveis, de preferência sanguinários, que possam satisfazer a hiena emboscada no interior de cada um.

-Levante-se o réu- Cacareja o meirinho, numa voz cavernosa mas assertiva.

Certo é que o homem não tem que levantar-se, pois sempre estivera de pé, óbvio lapso funcionário do escrivão, por certo mais reflexo de rotina diária que qualquer outra coisa.

O magistrado sombrio e teatral, negro, qual corvo, na sua beca já coçada, lê a sentença de forma cadente e redonda e remata o relambório, circunstancial e jurídico, com dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.

O réu estremece, vergam-se-lhe as canetas escanzeladas, parece que vai ruir, porém lá se aguenta. Não percebeu, está claro, o cominativo e, na sua cabeça, apenas estrondeia a palavra prisão. E já se vê entre quatro paredes, dentro de grades, a ver o sol aos quadradinhos.

- Ai senhor juiz, não me desgrace, que tenho lá em casa cinco bocas para sustentar. Que vai ser delas, comigo no xilindró? Por favor, não me pode dar uma pena mais pequenina?

O magistrado irá explicar ao pobre esquálido em pânico a decisão mal entendida, mas, antes, adverte de modo sorumbático:

-Ó homem, ao juiz nunca se fazem pedidos.

Ao que o outro retruque, a tremer como varas verdes, voz num fio, meio esganiçada, num assomo residual de coragem pêca:

-Ai, senhor juiz. Pelas suas alminhas. Pois se até a Deus se pede porque não posso eu pedir-lhe a si?!

V.C.