Fora de Foco - O regresso às origens no começo da primavera na magistratura
“O imperativo categórico da tolerância: Age de tal modo, que as consequências
da tua acção sejam concordantes com a máxima prevenção ou diminuição
da miséria humana”. (Kaufmann, Arthur, Filosofia do Direito, 2.ª edição, Lisboa,
2007, dedicatória e p. 509)
Arrumando, já, a inevitável nota biográfica: sendo natural de Lamego e com laços familiares também em Castro Daire, mas tendo assentado arraiais no Porto desde os tempos da faculdade, a minha colocação no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, no âmbito da formação como Magistrado do Ministério Público (2.º ciclo do curso de formação teórico-prática e sequente estágio de ingresso), recentemente concluída, despertou em mim um verdadeiro sentimento telúrico no retorno (eterno? transitório?) ao meu distrito de origem (Viseu): o que me encoraja a partilhar, neste espaço, umas breves palavras sobre esse “pedaço de vida” neste início da minha “primavera na magistratura”.
“Pedaço de vida” esse que se encontra por completar na Comarca de Viseu: segue, agora, em primeira colocação, o Juízo de Competência Genérica de Sátão.
A vantagem de serem breves as anunciadas palavras (pelo menos é essa a minha intenção…), tal como escrevia Gabriel de Tarde em finais do século XIX, é que “tal como as orações curtas, se não vão todas ao céu, elas vão diretas ao coração do leitor contemporâneo que anda sempre apressado” – ainda que o “contemporâneo” do século XXI, não raras vezes, se contente em “mastigar carne já moída” ou com um discurso artificial originário de uma novel “intelligentsia”.
Se bem que familiarizado com o distrito, o meu primeiro impacto judiciário com a Comarca de Viseu – historicamente organizada e cunhada na “Beira” – foi com a sua atual dimensão/extensão, cujos municípios que a integram se espraiam entre a região do Centro e a do Norte (nomeadamente o Alto Douro) com a singular natureza ôntica do seu território e das suas gentes (para muitos um “facto notório”).
Tal dimensão da Comarca de Viseu reflete-se, na minha perspetiva e prática vivenciada, num “latejar” de ritmo e intensidade etnográfica e cultural que diferem consoante a população do concreto município em que nos encontremos (no distrito de Viseu).
De toda a sorte, até porque existem inegáveis traços comuns, tal como pude observar e experienciar, a “interioridade” já não é salvo-conduto para a nova e complexa criminalidade; ainda que, na outra face da moeda, se mantenham prementes as “velhas” problemáticas e preocupações (nas várias jurisdições) - mesmo que com roupagens novas (vg. regime do maior acompanhado, Lei de Saúde Mental).
Incontornável: a tensão que se gera entre o tempo disponível e um certo dom da ubiquidade que por vezes as funções de Procurador da República exigem; fundamental: encontrar um equilíbrio entre o tempo disponível, o tom e a eficácia (até pedagógica/social).
Tempo esse que escoa de forma voraz, deixando-nos por vezes impotentes e desarmados: adaptando a aporia de Santo Agostinho quanto ao tempo, se ninguém nos pergunta a esse respeito sabemos dar a resposta, mas quando nos pedem para explicar já não sabemos.
Mais do que fonte de histórias do ofício: o atendimento e contacto com o público – rectius: ao povo da comarca com a sua forma de ser ainda reconhecível… por exemplo, a vítima que se arrepende da queixa apresentada e de forma férrea anuncia no processo, várias vezes, por escrito e em declarações, que quer desistir da queixa relativa a um crime público … mesmo sendo explicado que tal não é legalmente possível… não desiste de desistir! –, especialmente numa população que ainda carece mais do contacto pessoal do que do virtual, torna-se pedra de toque para o cabal exercício das funções de magistrado do Ministério Público.
Balanço provisório: a ligação “telúrica” e “retemperadora” à “Beira” é esbatida pelos problemas transversais a todas as comarcas e por uma certa homogeneização (inevitável): conquanto, tal como a ideia inquebrantável do “eterno retorno”, ainda se mantém firme e acolhedora no meu espírito essa ligação/sentimento.
Fernando Quintela Cunha