Na sobretarde, com frequência noite dentro, lá chegava ele, rosto macerado de cansaço, ombros caídos, vergados ao peso de tanto esforço, de tanto mourejar de sol a sol, antes e para lá do sol, não raro.
Mas, entre aquela poeira de fadiga e desilusão, os seus olhos brilhavam, fosforesciam quais lanternas vivas na noite entrevecida e densa.
Eu sentia o ruído da aldraba, primeiro, de seguida o ranger da porta, e o meu coração abria-se em alvorada. Podia pressentir, até, à distância, ou a minha ansiedade assim se punha a ser, o seu cheiro intenso, mágica mistura de suor, urze, terra, mortalha de cigarro, óleo queimado e limalha de ferro.
E era no seu abraço que eu redimia o calvário do meu dia de criança solitária, perseguida pelos espectros e sombras de que a sua ausência era composta.
E trazia-me esferinhas. Brilhavam como luas, as esferinhas de aço, redondas, muito polidas e tão pequenas que chegavam a caber na minha mão nédia e igualmente pequenina.
Eram tempos de penúria, esses, tempos de muitas lágrimas de não saber porquê e outras tão justificadas que o tempo não as quer recordar em mim.
E eu, que agora, no longe de tantos anos, mal me lembro da vida, da minha e de outras inumeráveis vidas feito posso ver com nitidez de retrato fiel, o seu corpo fechado na ganga puída e ludra da roupa pobre que vestia; sinto o abraço quente dos seus braços, a doce aspereza da sua barba no meu rosto de criança, rosto de cetim, suave e leve como o musgo. E não sei o que lucilava mais, nessa altura, se o sol dos seus olhos claros, se o luar das pequeninas esferas perdidas na minha mão cerrada.
Tantos anos que o tempo comeu, tanto tempo que paira sobre a sua ausência prematura. Mas eis que ele se refaz à minha frente, nas escâncaras do dia ou no tumulto silencioso dos sonhos que desfiam o rosário da minha noite insone. Representa-se como imagem vívida, sempre, sempre, e ainda hoje tão real na tarde do que sou, que não sei se ele está ali ou é a minha memória que o quer dessa maneira.
É então que descerro o meu escrínio velho, retiro dele as esferinhas que ainda brilham, e abrindo a mão em palma, levanto os olhos até à estrela mais longínqua e vejo-o sorrir. E sinto, numa respiração cansada que mansa dor expulsa, que ele me abraça outra vez e que o seu calor me envolve o tronco e a alma fatigados.
E sendo assim, fico sem saber, nesse momento intemporal e breve, se o que brilha na minha mão estendida são pequeninas esferas ou é o cristalino e puríssimo sal de algumas lágrimas.
V.C.