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Fora de Foco - As esferinhas

25 maio 2021
Fora de Foco

Na sobretarde, com frequência noite dentro, lá chegava ele, rosto macerado de cansaço, ombros caídos, vergados ao peso de tanto esforço, de tanto mourejar de sol a sol, antes e para lá do sol, não raro.

Mas, entre aquela poeira de fadiga e desilusão, os seus olhos brilhavam, fosforesciam quais lanternas vivas na noite entrevecida e densa.

Eu sentia o ruído da aldraba, primeiro, de seguida o ranger da porta, e o meu coração abria-se em alvorada. Podia pressentir, até, à distância, ou a minha ansiedade assim se punha a ser, o seu cheiro intenso, mágica mistura de suor, urze, terra, mortalha de cigarro, óleo queimado e limalha de ferro.

E era no seu abraço que eu redimia o calvário do meu dia de criança solitária, perseguida pelos espectros e sombras de que a sua ausência era composta.

E trazia-me esferinhas. Brilhavam como luas, as esferinhas de aço, redondas, muito polidas e tão pequenas que chegavam a caber na minha mão nédia e igualmente pequenina.

Eram tempos de penúria, esses, tempos de muitas lágrimas de não saber porquê e outras tão justificadas que o tempo não as quer recordar em mim.

E eu, que agora, no longe de tantos anos, mal me lembro da vida, da minha e de outras inumeráveis vidas feito posso ver com nitidez de retrato fiel, o seu corpo fechado na ganga puída e ludra da roupa pobre que vestia; sinto o abraço quente dos seus braços, a doce aspereza da sua barba no meu rosto de criança, rosto de cetim, suave e leve como o musgo. E não sei o que lucilava mais, nessa altura, se o sol dos seus olhos claros, se o luar das pequeninas esferas perdidas na minha mão cerrada.

Tantos anos que o tempo comeu, tanto tempo que paira sobre a sua ausência prematura. Mas eis que ele se refaz à minha frente, nas escâncaras do dia ou no tumulto silencioso dos sonhos que desfiam o rosário da minha noite insone. Representa-se como imagem vívida, sempre, sempre, e ainda hoje tão real na tarde do que sou, que não sei se ele está ali ou é a minha memória que o quer dessa maneira.

É então que descerro o meu escrínio velho, retiro dele as esferinhas que ainda brilham, e abrindo a mão em palma, levanto os olhos até à estrela mais longínqua e vejo-o sorrir. E sinto, numa respiração cansada que mansa dor expulsa, que ele me abraça outra vez e que o seu calor me envolve o tronco e a alma fatigados.

E sendo assim, fico sem saber, nesse momento intemporal e breve, se o que brilha na minha mão estendida são pequeninas esferas ou é o cristalino e puríssimo sal de algumas lágrimas.

V.C.