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Fora de Foco - A pomba branca do Rossio

7 jan 2022

A pomba branca do Rossio

“Que é morrer senão erguer-se nu ao vento e fundir-se com o sol? Que é deixar de respirar senão libertar o corpo das incessantes marés para poder elevar-se e expandir-se na busca de Deus sem nenhum limite?” - Khalil Gibran, in “O Profeta”, pag. 54.

 

Carregava consigo o peso da maior dor do mundo. Era uma mulher cuja beleza não passava despercebida em parte alguma, mas os seus olhos cor de violeta que, nos tempos da Faculdade, a tinham celebrizado, valendo-lhe o cognome de “Elizabeth Taylor”, tinham perdido todo o brilho. Também a luminosidade que sempre irradiava do seu sorriso, tinha, há muito, deixado de ser uma realidade viva.

Lera “A filha-sombra” de P.F.Thomése, e revia-se no estado de espírito do autor que tinha perdido a filha: “Tudo está congelado, tão frio e quieto torna-se. Tão frio que afasta todo o sentir. Tão quieto que a respiração congela nos lábios como um ponto de interrogação. Não acontece mais nada, “o momento que irrompe” está para sempre congelado.”

O filho dela tinha 3 anos de idade, olhos cor de violeta e caracois loiros a emoldurar as bochechas rosadas de querubim. Uma criatura celestial. Talvez por pertencer ao Céu e não à Terra, Deus tinha-o chamado a si, à hora do crepúsculo, num dia de Setembro.

Ela transformara-se, então, num ser afogado em tristeza.

Não aguentando a angústia da perda do filho, fôra viver para Lisboa, abandonando Viseu que tantas recordações lhe trazia, pois era aqui que o seu menino despontava em cada esquina e que as suas gargalhadas eram audíveis em cada canto.

Tinham fluído três longos anos de intensas sessões de psicoterapia, sem que, alguma vez, tivesse conseguido voltar à “Cidade Jardim” que vira nascer o seu menino.

Tinha gravada na memória a “Praça da República” de Viseu, vulgarmente designada por “Rossio”, onde tantas vezes tinha estado com seu filho pela mão, a dar milho aos pombos, enquanto ambos se abraçavam numa perfeita fusão de almas e ela lhe dava beijos que depositavam na face rechonchuda dele, todo o amor que enchia o seu coração de mãe.

Depois, atravessavam a rua e seguiam pelo passeio que acompanha o mural de azulejos de temática regionalista, que se situa a nascente do “Rossio” e se estende até ao “Jardim das Mães”. Neste jardim, por entre canteiros de buxos, rosas e lírios, seu filho detinha-se a contemplar o “Monumento às Mães” que se ergue no meio do jardim, com o menino a dormir no colo de sua mãe, “o melhor sono da nossa vida em que na nossa alma docemente penetra Deus”, como se lê na inscrição feita na base no monumento. O mesmo sono que o seu menino tantas vezes dormira no seu colo…

Agora tinha finalmente arranjado coragem. Voltara a Viseu em homenagem ao filho da terra, porque tinha interiorizado que, ao fugir do lugar onde ambos tinham sido felizes, estava a cristalizar o espírito dele nesse lugar, impedindo-o de usufruir da paz e liberdade eternas de que Deus o considerara merecedor.

No “Rossio” tudo permanecia igual a si próprio. Lá estavam o majestático e bem conservado edifício dos Paços do Concelho com o seu pórtico com cantaria, as tílias ancestrais a desafiar o céu, os bancos de jardim com tantas histórias para contar, e os pombos nos beirais, nos peitoris das janelas e nas varandas do edifício.

Recordava-se particularmente de uma pomba branca que sempre tinha vindo para junto deles, permanecendo a seus pés e comendo suavemente os grãos de milho nas mãos deles, fitando-os com infinita ternura.

Desta feita sozinha, acorreu a dar milho aos pombos, e verificou que a pomba branca veio posicionar-se a seus pés, com a ternura e a graciosidade de outros tempos. Poisara agora gentilmente no ombro dela, fitando-a com uma profunda tristeza no olhar. De mansinho, arrulhou com compaixão ao ouvido dela, afagando a sua alma enlutada de mãe. De seguida, levantou voo e, em jeito de apelo, não deixando nunca de a olhar com enorme  doçura, voou até ao “Jardim das Mães”, onde poisou na mão do menino que dormia no colo de sua mãe. Ela seguiu a pomba branca e entrou no “Jardim das Mães”. A pomba veio pousar de novo no ombro dela. Sentiu-se subitamente acariciada por uma enorme vaga de paz que a mergulhou numa neblina perfumada de tranquilidade espiritual.

Foi então que do firmamento se desprendeu uma vigorosa chuva de cometas e uma melodia cantada por pequenos anjos.

Compreendeu que o seu menino podia finalmente dormir o sono celestial e viver a paz eterna, porque ela tinha desapertado as amarras que o eternizavam num só lugar. Seu filho era agora um espírito com luz própria, livre de voar para onde as asas de Deus o levassem.

 

Isabel Cabral Costa

(Texto incluído no meu livro “A Chuva dançou com ela” - Corpos Editora, 2008)