Simp

Está aqui

Fora de Foco - Nas terras onde os lobos uivam

26 abr 2021
Fora de Foco

“Se é unanimemente reconhecida a importância dos operadores judiciários conhecerem bem o meio onde se movem, inversamente, neste espaço de construção/desconstrução o que se pretende é, de um modo informal e através de pequenos textos, periodicamente, dar a conhecer à comunidade histórias, reais ou fictícias, pensamentos ou pedaços de vida cujo ponto em comum é terem sido escritas por magistrados de ou em exercício de funções na Comarca de Viseu e, nessa medida, traduzirem, também, um olhar sentido de quem, em maior ou menor grau, conhece o pulsar do distrito e das pessoas que nele vivem.”

O Magistrado do Ministério Público Coordenador da Comarca de Viseu

 

 

“A Beira Alta não tem símile no Mundo.

Em poucas dezenas de quilómetros reproduz-se a terra toda; amenidade e braveza, a colina e o vale, a civilização e a selvajaria.”

Aquilino Ribeiro, A Obra e o Homem, página 51, Arcádia.

 

Nasci em terras de Viriato, esse lendário general pastor, que na luta pela liberdade enfrentou com coragem a opressão da Roma Imperial.

Formei-me na eterna cidade dos estudantes.

Nos jardins do Palácio Palmela, a 2 de julho do ano de 2008, ao som do Grupo Jurídico de Canto e Guitarra de Coimbra, composto por antigos alunos da minha Faculdade, concretizei um sonho.

Recordo os tempos passados na minha primeira comarca – Celorico da Beira – situada na margem esquerda do rio Mondego (mar interior da minha Pátria), na vertente norte da Serra da Estrela, onde pelas janelas do meu gabinete espreitava o castelo. A ansiedade sentida durante o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o notável roteiro jurídico (pela diversidade de situações que somos chamados a resolver) e turístico (pelas paisagens que conhecemos e menus típicos que degustamos) do 1º turno das férias de verão e de todas as histórias que vivi, nos processos que estudei. A marcante história de amor, no planalto serrano de Vide-Entre-Vinhas, entre a Amélia e o Joaquim, contra os quais deduzi acusação, imputando a cada um deles, entre outros, a prática do crime de bigamia. Homens e mulheres cuja terra, sendo território sagrado, é defendida com sangue. Gentes do campo, retas de carácter e com um avassalador sentido de justiça.

Era tempo de colocar em prática os ensinamentos da faculdade, do Centro de Estudos Judiciários e do período de estágio na comarca de Tondela.

Era tempo de exercer a profissão com a entrega exigida a quem, ainda a viver a ilusão dos “verdes anos”, acredita que é possível mudar o mundo. Num Tribunal de competência genérica, como é o de Celorico da Beira, o exercício das diversas funções que cabe ao magistrado do Ministério Público espelham a heterogeneidade e a transversalidade das suas atribuições e competências, na defesa da legalidade e na promoção do acesso dos cidadãos ao direito e à Justiça.

À competência exclusiva do exercício da ação penal, núcleo central em termos de volume processual e notoriedade mediática, acrescem as competências no patrocínio dos direitos sociais (familiares), exercício nobre que o atendimento ao público consagra e cujo relevo social tende a permanecer ignorado: “Que Deus lhe pague, Senhora Delegada e que a saúde nunca lhe falte”.

Como não amar a nossa profissão, quando é por demais humano tudo aquilo com que lidamos?

Olho a beca que envergo, em tão rotineiro ato que por vezes esqueço que também ela guarda e esconde o que a alma sente e a boca não diz em tantas diligências e julgamentos.

Nunca foi fácil nem cómodo o exercício desta Magistratura, muito menos nos tempos que atravessamos, tempos de mudança e incerteza.

Procuro desempenhar as minhas funções com o espírito de serviço, humanidade e nobreza que a profissão exige e com a dimensão moral da vida que meus pais me transmitiram.

Ainda em terras da Beira, na cidade mais alta, numa dezena de anos, absorvi novas histórias, construi o fio de prumo que me norteará, talhado diariamente em cada despacho, em cada julgamento.

A Guarda, formosa quando veste o seu manto de neve e serrania, fez-me crescer em humanidade e conhecimento.

Sei de cor o caminho, a subida íngreme ao ar mais puro. O nome das estações da linha da Beira Alta, que em percurso paralelo ao eixo do Mondego, me desafiava a passar a fronteira.

Recordo, com saudade, a casa da buganvília cor de sangue, a robustez da pedra da fortaleza de Almeida, o pôr-do-sol no Castelo de Marialva, as amendoeiras de Figueira de Castelo Rodrigo, o calor insuportável de um turno de verão, em Vila Nova de Foz Côa. 

Às vezes, dou por mim, de volta ao Tribunal da Guarda, a abrir a porta daquele pequeno gabinete no rés-do-chão e a chamar os colegas cujo nome não esquecerei, porque não é necessário ver-lhes as caras, para os sabermos personagens na nossa história.

O passar dos anos, trouxe-me a casa, a terras de Viriato.

Mantenho o rio. Olho a Estrela ao longe. Agora, é aqui que faz sol.

Aprendi que a única diferença somos nós e aquilo que permanece em nós.

Tudo caminha connosco.

Nada se perde.

O que importa é que vivas, que sejas justo, contigo e com os outros, e que não te zangues mais do que o necessário. Aos colegas que começam agora, relembro sempre, assim como um dia, também a mim, não me deixaram olvidar; sê justo, imparcial, respeita todos aqueles que contigo trabalham.

Haverá dias de tempestade no mar, mas outros haverá em que o vento soprará a favor.

Resiste.

 

Viseu, 25.04.2021

Z.M.